“O 25 de Abril começa em Angola”
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O estalar da guerra de libertação em Angola, em 1961, foi o início do fim do regime salazarista e do colonialismo português. No dia 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas derrubou a mais longa ditadura europeia do século XX e a força por detrás do golpe militar começou em África face à revolta contra as guerras nos territórios colonizados. Para a antiga ministra da Justiça de Portugal, Francisca Van Dunem, não há dúvidas: “O 25 de Abril começa em Angola”.
Nesta reportagem, fomos até à cidade francesa de Lyon ouvir uma conferência em torno dos 50 anos da Revolução dos Cravos e falámos com dois dos oradores: a antiga ministra da Justiça de Portugal Francisca Van Dunem e o escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa.
A conferência decorreu na “Maison Internationale des Langues et des Cultures”, no dia do arranque, em França, das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. A França acolheu imensos exilados políticos durante a ditadura portuguesa e acompanhou, de perto, a revolução. Por isso, diferentes cidades acolhem, este ano, ciclos de cinema, conferências, debates, espectáculos e concertos em torno do tema.
Em Lyon, a conversa teve como mote “50 anos depois: as repercussões mundiais da Revolução dos Cravos” e permitiu compreender o contexto internacional em que o 25 de Abril se deu, as guerras de libertação e as lições a reter numa altura em que se assiste à subida dos extremismos. Aproveitámos a oportunidade para falar com a antiga ministra da Justiça e Administração Interna de Portugal, Francisca Van Dunem, e o escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa sobre como viveram aquela época. Para o também historiador, se nesta história se se ousar falar em heróis, então esses foram os povos que ganharam a liberdade à custa de perderem os filhos na guerra. Para Francisca Van Dunem, é preciso relembrar que não há dúvidas que “o 25 de Abril começa em Angola”.
Francisca Van Dunem: “O 25 de Abril começa em Angola”
“O 25 de Abril começa em Angola, claramente. O 25 de Abril começa em Angola, começa em 1961, começa com a guerra colonial que leva Portugal àquela posição de intransigência. Como se recorda, 1960 é considerado pelas Nações Unidas como o Ano de África porque 17 países alcançaram a independência. Portanto, havia oito países independentes no final da Segunda Guerra Mundial, juntam-se mais 17 nessa altura. Há um vento que varre todo o continente e que inicia o processo de descolonização. Portugal reage, Portugal é refractário a esse processo e demora 14 anos”, começa por considerar Francisca Van Dunem.
A antiga ministra da Justiça sublinha que “são as contradições que se geram nesses 14 anos, nomeadamente a recusa à guerra colonial de jovens militares” que estão na origem da revolução.
Francisca Van Dunem recorda ainda que, na altura, “as pessoas acabavam o curso e iam para a guerra, as pessoas chumbavam e iam para a guerra”, sendo “jovens entre os 21 e os 24 anos que ficavam com a vida destruída”. Além disso, a situação era “particularmente complexa na perspectiva militar, se considerarmos, por exemplo, que na Guiné a guerra estava perdida e o impasse que havia em Angola e em Moçambique”.
Por todas estas razões, “efectivamente são os militares que desencadeiam este movimento” que, sublinha, “tem na sua origem a guerra, a recusa da guerra, o cansaço da guerra, a consciência de que não há uma saída militar para aquele conflito e que a saída é necessariamente política”.
Questionada sobre se homenagear os Capitães de Abril, numa perspectiva centrada em Portugal, não significa esquecer líderes da libertação dos antigos países colonizados, Francisca Van Dunem responde que “é natural que Portugal tenha uma perspectiva um pouco eurocêntrica e autocentrada que faz com que festeje o 25 de Abril, orientando muito para factualidade do que ocorreu em Portugal”. Porém, acrescenta que “é óbvio que pessoas como Amílcar Cabral, como Samora Machel, como o próprio Agostinho Neto” conduziram ao “isolamento internacional de Portugal, que desgastou Portugal no mundo em geral e que acabou por desembocar no 25 de Abril”.
Se, ainda hoje, domina a ideia de que o 25 de Abril foi um evento praticamente sem sangue, para trás fica toda a violência do colonialismo e da guerra. Tanto é que pouco se fala por exemplo, dos massacres da Baixa de Cassange, de Wiriamu, da Operação Nó Górdio ou da Operação Mar Verde. Porque não falar nisto, nas escolas, por exemplo? Francisca Van Dunem admite que “quem fez Abril se envergonhe destes factos”.
“Os militares que fazem Abril são basicamente militares democratas e eu estou convencida de que esses momentos são momentos que envergonham os militares portugueses que fizeram Abril. Por isso, é expectável que procurem valorizar mais aquilo que foram os aspectos positivos que ocorrem a partir do momento em que desencadeiam a operação do que propriamente os aspectos negativos que têm a ver com a violência da guerra”, acrescentou.
Francisca Van Dunem nasceu em Luanda em 1955 e cresceu num ambiente familiar de militância e luta contra o colonialismo, sabendo, desde pequena, que estava “do outro lado”. “Eu faço toda a minha infância e juventude num clima que é muito marcado pela guerra colonial e, sobretudo, pelo ataque que o regime fazia aos movimentos de libertação a todos os níveis. Eu tinha vários familiares que estavam envolvidos directamente na luta de libertação e que foram presos, uns em 59, outros em 61”, recorda.
Depois dos acontecimentos de 1961, em Luanda, “era impossível não se estar do outro lado” devido “ao nível de violência das manifestações” e “nessa altura ser africano no seu próprio país passou a ser um risco, nomeadamente andar na rua, a partir do momento em que o sol se punha”. Além disso, os ideais de justiça eram também alimentados pelo irmão mais velho, “que era militante do MPLA desde a primeira hora” e que a fez conhecer, desde cedo, os elementos da estrutura clandestina do MPLA. [Anos depois, o irmão José Van Dunem e a companheira Sita Valles seriam assassinados, como milhares de outros militantes do MPLA, depois dos acontecimentos do 27 de Maio de 1977 que levaram ao que muitos chamaram de “Purga em Angola” e que visou os apoiantes de Nito Alves em rota de colisão contra Agostinho Neto.]
Em 1973, Francisca Van Dunem vai para Portugal estudar direito e também aí soube logo qual era o seu “lado”. Mesmo que houvesse uma mobilização crescente contra a guerra colonial, nomeadamente no meio académico, a jovem de 17 anos não manteve contactos com oposicionistas do regime e aquilo que sobressaía na universidade era mais “as reivindicações de natureza política” dos estudantes do que as preocupações com a guerra e o colonialismo.
“A minha guerra era a guerra colonial. A minha guerra era o fim do colonialismo. Era basicamente essa a minha completa determinação. Nessa altura, o meu irmão mais velho estava já preso. Ele tinha sido preso como militar do exército colonial português. Estava preso em São Nicolau. Eu já o tinha visitado na cadeia de São Paulo, onde ele esteve preso pela PIDE – e, ironia do destino, o regime posterior acabou por converter a mesma cadeia em cadeia política - mas ele tinha estado preso na cadeia de São Paulo. Eu fui visitá-lo a São Nicolau, a ele e aos companheiros. Sempre houve entre mim e ele uma relação de uma enorme solidariedade. Obviamente, eu não era uma militante, mas conhecia a dimensão política dos problemas e estava totalmente de acordo com aquilo que estava a ser feito e faria qualquer coisa que fosse necessário para ajudar”, acrescenta.
Escassos meses depois de chegar a Lisboa, Francisca foi surpreendida com o 25 de Abril de 1974 e, algum tempo depois, percebeu que “a questão colonial podia estar em causa”.
Ungulani Ba Ka Khosa: “Os heróis de tudo isto são os povos”
O 25 de Abril veio “safar a pele” do moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa – a expressao é mesmo dele. Na altura, tinha apenas 16 anos, mas a ida para a guerra já estava no seu horizonte.
“Com 16 anos de idade naquela altura, a gente só estava a ver qual era a melhor forma de cumprir o serviço militar obrigatório. Uma das coisas era estudar, estudar, de modo a ter uma patente alta no exército e não estar em zonas perigosas. Safar a pele, como se diz. O 25 de Abril safou a pele porque, a partir daí, nunca mais soube o que era exército, nem ir para a tropa, nem nada, a vida foi normal, fui estudando e pronto”, conta o escritor.
Ungulani Ba Ka Khosa recorda que Portugal tinha uma guerra em três frentes em África, “o exército já estava exausto” e havia “um esforço enorme para sustentar essa guerra”, seja em termos humanos, militares e financeiros.
“O exército português e principalmente os jovens das Forças Armadas viram que a solução de todo o problema colonial não passava pela guerra, mas sim pela conversação, ou seja, pela via política que é um dos grandes pontos do Manifesto do Movimento das Forças Armadas”, explica.
O escritor admite que a história tende a fraccionar os acontecimentos, mas há elos que não se podem apagar, nomeadamente os séculos de colonialismo. Nesse sentido, o 25 de Abril serviu “ambas as partes”: “Portugal e a sua democratização, assim como a libertação dos países colonizados por Portugal”.
Ungulani Ba Ka Khosa não concorda que o sangue derramado durante o colonialismo e as guerras de libertação sejam esquecidos quando se diz que o 25 de Abril foi uma revolução relativamente pacífica.
“[Revolução] sem sangue é uma análise centrada pura e simplesmente no momento da derrocada do regime de Marcelo Caetano. Portanto, naquele dia do golpe de Estado, foi um golpe limpo, sem derramamento de sangue. Agora, olhando tudo isso, a história mostra que houve muito sangue, houve muitas mortes nos mais de 10 anos de luta armada. As mortes, os estropiados da guerra, as marcas que a guerra largou”, afirma.
O também historiador sublinha que se heróis os houve, então esses foram os povos que ganharam a liberdade, mas perderam os filhos na guerra: “Os heróis de tudo isto são os povos. É o povo português, é o povo moçambicano e os outros que entregaram os seus filhos. Historicamente, naquele período específico, coube a uma geração encetar a luta pela libertação e, no outro lado, coube a uma geração travar a guerra, fazendo o golpe e acabando com o fascismo em Portugal.”
Ungulani Ba Ka Khosa alerta que a democracia e a liberdade são valores constantemente ameaçados e, por isso, devem ser cuidados. Francisca Van Dunem avisa, também, que “o mal é profundamente insidioso” e tem a capacidade para “ocultar as suas dimensões mais destrutivas no véu da ignorância, diluído pelo tempo e pela história”. Por isso, fica no ar a questão: cinquenta anos depois do derrube do fascismo em Portugal, como é que se defendem as democracias? “Porque somos democratas, devemos permitir que os não democratas ajam no quadro da democracia? Eu acho que temos de perceber que há um limite e qual é esse limite”, conclui Francisca Van Dunem.