Espectáculo “Bate Fado” liberta o fado dos tempos da ditadura
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A peça “Bate Fado”, da dupla Jonas & Lander, é apresentada na Maison de la Danse de Lyon, no âmbito do lançamento, em França, das comemorações dos 50 anos da “Revolução dos Cravos”. Em palco, nove intérpretes - entre bailarinos, músicos e um fadista coreógrafo - resgatam a dança que o fado perdeu no século XIX para a devolver ao universo coreográfico do século XXI. Jonas & Lander abanam a catedral do fado conservador e deixam as portas escancaradas a uma festa pagã, onde todos são convidados.
RFI: Cinquenta anos depois do 25 de Abril, “Bate Fado” é muito libertador. O que é que representa simbolicamente este espectáculo, quando o fado ficou tão agarrado à imagem da ditadura de "fado, futebol e Fátima"?
Lander Patrick: Eu acho que o fado sofreu de uma grande questão que foi ser instrumentalizado pelo regime. Ele tinha uma certa vitalidade que foi transformada para ir de uma maneira mais alinhavada com os ideais ou com o que se tentava perpetuar pelo regime – e por António Ferro que era o principal responsável pela maquinaria cultural e pela propaganda cultural do Salazar. Mas claro que não foi só a partir daí que o fado sofreu alterações. Ele tem vindo a sofrer, mas ficou mais evidente no período em que houve certas características, como ter que se aprovar que letra é que se vai cantar, ter que se cantar de preto, uma série de características que aí ficaram muito vincadas.
Mas ele já tinha vindo a sofrer alterações, tanto que a gente deixa de ver registos sobre a dança de fado a partir, mais ou menos de 1910, portanto, muito antes da ditadura. É um período em que estamos ali a entrar na queda da monarquia, gripe espanhola, primeira guerra mundial. Ou seja, se pensarmos que aquilo era uma manifestação praticada nas periferias, em lugares perigosos, uma possibilidade é que simplesmente se tenha dissolvido.
Jonas Lopes: Este projecto fez-nos entrar num mundo de danças proibidas e perseguidas pelo sistema, o que acontecia muito recorrentemente nesta época, principalmente com as danças que tinham algum cariz afro e de escravos. No Brasil, ainda há um grupo que dança uma música chamada fado e essa dança é dançada em cruz, com sapateado e palmas, tal como nos registos, para se poder dançar nos dias festivos e nos dias religiosos. Supostamente os tambores também foram proibidos e o sapateado veio marcar o ritmo porque já não estavam de pé descalço, estavam com um tacão.
Na ditadura, o que aconteceu foi que eles perceberam que não ia dar para extinguir o fado e realmente instrumentalizaram-no de uma forma muito subtil, como fizeram também com o folclore. Por exemplo, os fadistas e os guitarristas para poderem tocar em público, eles tinham que ter uma carteira de fadista profissional, ou seja, isto já ajudava o regime a ter as rédeas nas coisas porque as letras tinham que ser declaradas ao início da noite; a questão do preto tinha muito que ver com a elegância porque nos bairros problemáticos, onde havia fado, eles não se vestiam de preto, vestiam-se com cores e padrões e patilhas. Na ditadura, o que aconteceu foi mais isto: a instrumentalização do fado e do folclore e teres que ter uma carteira profissional de um júri do Estado que dava as carteiras profissionais. O fado que nos chega hoje é um bocadinho a herança disso.
O facto de vocês, de certa forma, devolverem o carácter subversivo ao fado, 50 anos depois do 25 de Abril e cerca de 100 anos depois de ele ter perdido esse carácter festivo, significa também que vocês são, de certa forma, os filhos da “Revolução dos Cravos”?
Lander Patrick: Eu acho que todas as pessoas que usufruem da democracia, como a temos agora, são filhos de uma luta, não é?
Mas há a liberdade de criar e há a liberdade de ser subversivo e de devolver o lado, se calhar, mais pagão a coisas que até agora eram quase santificadas, como o fado...
Jonas Lopes: Exacto e essa pergunta que fazes vem muito de acordo com quando nós estávamos a criar, eu sentia mesmo que estava a criar com outra entidade que não o Lander e que era o fado. Éramos três na sala e eu acho que todas as músicas que são tão antigas e que representam tantas histórias e tantas vozes e tantas vidas de um local específico, normalmente devem ser mexidas com algum cuidado e respeito - e eu faço isso - mas a arte é o símbolo máximo da liberdade e tudo o que eu faço é numa perspectiva de expansão e de questionamento em relação a isto, a que fado é este.
Justamente, que fado é este? De onde é que surge a dança do fado?
Lander Patrick: O geógrafo Baldi está a visitar o Brasil, nas primeiras décadas de 1800. Ele está a passar por lá e relata o que está a acontecer ali no Rio de Janeiro. Relata que à noite, nas soirées, as pessoas se encontram e dançam, caranguejo, maxixe, fado. Ele começa a descrever o que é o fado, como é que é a dança, como é que ela se processa. Podemos dizer que o primeiro registo é esse, não podemos dizer que o fado nasceu no Brasil, não sabemos. É uma incógnita e acho que é até bonito não saber. O que é importante saber e o que é importante reivindicar aqui é que várias culturas contribuíram para isto que temos hoje.
E a parte da dança?
Jonas Lopes: A dança do fado sobreviveu no Brasil, está quase a extinguir-se, mas há um grupo em Quissamã e se puserem fado quissamã no YouTube, por exemplo, encontram coisas deste fado dançado do Brasil. Quem se interessa minimamente por fado, vai logo ler os dois primeiros livros de história do fado, que é "A Triste Canção do Sul" e "História do Fado" e esses dois livros começam a falar do fado pela dança. Há, inclusive, um em que os primeiros capítulos são dedicados à dança. Ao longo desses livros, fala-se com muita naturalidade: “a não sei quantas era muito boa a cantar e a bater o fado...”
E a expressão "bater o fado", de onde vem?
Jonas Lopes: Da percussão, tem a ver com o bater pé no chão. É uma coisa também muito ancestral ao ser humano e muito ligado ao ritual que o fado também perdeu. Ou seja, este projecto realmente levanta essa questão: o que é que o fado perde ao perder a dança? Primeiro, perdes a percussão porque a dança era um instrumento de percussão. Depois perdes a dança. Numa noite de fados, por exemplo, ter alguém a suar ou que acabou de dançar ou, como temos hoje em dia, toda a gente sentada e estática, isto também cria um ambiente completamente diferente no meio do fado.
Entretanto, o bater com o pé no chão é uma coisa muito ancestral e muito ritualística. O que é que se perdeu ao deixar de se bater o pé no chão ao som do fado? A Raquel Tavares, por exemplo, às vezes, a cantar ainda faz muito isso, bater com o pé no chão, a própria Ana Moura, a Lenita Gentil, há muitas fadistas, especialmente as mulheres, que ainda têm essa reminiscência de bater com o pé no chão.
Além do fado cantado e do fado batido, vocês fazem sapateado e dança contemporânea. Como é que conseguem cruzar estes dois mundos aparentemente paradoxais da dança e do fado, assim como o mundo conservador e o absolutamente contemporâneo e transgressivo?
Lander Patrick: Eu acho que foi através das descrições dos registos históricos que nos permitiram aceder a esta profusão de coisas. Foi a partir daí que nós conseguimos cruzar estes papéis promíscuos de que a pessoa que está a tocar levanta-se e dança, a pessoa que canta pega na guitarra, essa coisa meio obscura de os papéis não serem claros. Então isso ajudou-nos também a configurar o espectáculo nesse sítio meio pantanoso. O Jonas é fadista, mas depois ele está a dançar. Ou seja, os registos também nos ajudaram a desmantelar aquilo que a gente já tem meio que congelado que é o fado.
Jonas Lopes: Nós já éramos coreógrafos e criadores antes. Desde 2012, 2011, começámos a trabalhar juntos – a data oficial é 2013, mas nós começámos a trabalhar muito antes de estrear a primeira peça. O “Bate Fado” vem depois do COVID. Ou seja, passou uma década em que nos estavam constantemente a perguntar porque é que nós não juntávamos o mundo contemporâneo ao fado e um projecto com fado porque sabiam que eu também era fadista e que o Lander também era músico. Então, isto era quase inevitável de acontecer. O fio condutor que descobrimos foi o fado batido e o sapateado porque tudo o que vimos de dança com fado achávamos que não tinha relação directa ou que estava meio desconectado.
Lander Patrick: Ou então era demasiado directa, ou seja, a dança mimetizava a nostalgia do fado e ajudou-nos ver que as descrições das danças do fado eram um oposto. Então, temos dois pólos de tensão, como tens no samba - tens uma batucada alegre e tens uma letra triste. Isso cria uma densidade enorme. Quando o Jonas estava a perguntar o que é que o fado perde ao perder dança, eu acho que ele perde densidade porque ao puxar os diferentes pólos, como a dança vulcânica com a melancolia que é fortíssima no fado, crias uma profundidade. Isso ajudou-nos muito.
O Jonas é também fadista, é bailarino, é coreógrafo e, no fundo, está a devolver a dança ao fado. Inventou, de certa forma, o conceito de fadista coreógrafo?
Jonas Lopes: Não, já existia um fadista coreógrafo - pelo menos que eu conheça - e há várias fadistas, por exemplo, que fazem flamenco ou danças de salão. Há muita gente no fado ligada à dança, principalmente as mulheres, e um interesse também muito forte por parte de fadistas e de músicos. Por exemplo, os colegas que estão comigo aqui, fadistas de guitarra, eles já tinham falado comigo, tinham esse interesse na dança, muitos deles vêm das tunas, onde a dança, a música e tocar ao mesmo tempo é uma coisa muito constante, é uma coisa tão presente na nossa cultura. E não, eu não inventei o coreógrafo fadista [risos]. Mas não há muitos, eu só conheço um.
“Bate Fado” sobe ao palco da Maison de la Danse, a 11 e 12 de Janeiro de 2024.